ANGOLA É UMA ANOCRACIA?
No momento em que escrevo este texto, as notícias sobre Angola dedicam‑se ao rescaldo de uma greve de taxistas em que vídeos e «fotografias postas a circular nas redes sociais mostram um cenário caótico em alguns pontos da cidade [Luanda], com destaque para o que se vive no distrito urbano de Benfica, mais afastado do centro da cidade, onde um grupo de jovens incendiou bandeiras do MPLA e o edifício do comité distrital do partido que governa Angola há 46 anos». Não se pode dizer, nem de longe, nem de perto, que o Estado perdeu o controlo das ruas nesses primeiros dias de janeiro de 2022, mas as imagens de destruição levam a temer‑se outros futuros possíveis incidentes mais próximos do centro da cidade, lembrando talvez o tristemente famoso assalto ao Congresso norte‑americano em 6 de janeiro de 2021.
Foi este episódio americano que introduziu de forma persistente um vocábulo de ciência política, nas análises de alguns especialistas ou comentadores. Trata‑se da expressão anocracia, até então pouco ouvida ou lida. A anocracia vem sendo definida como um regime instável que combina elementos de ditadura e semi‑democracia. Um regime que mistura características democráticas com autocráticas, ou dito de outra forma, a anocracia será um regime que permite alguma oposição, mas que tem um desenvolvimento incompleto de mecanismos para corrigir queixas. A anocracia distingue‑se da autocracia, no sentido em que esta última apresenta um regime estável que mantém a autoridade e dinâmica política. Já no caso da anocracia, ao misto entre ditadura e democracia associa-se uma permanente agitação ou ingovernabilidade que dificultam o processo político.
A questão que se coloca divide-se em duas partes. A primeira é saber se Angola pode ser considerada uma anocracia, isto é, um regime instável que combina elementos de ditadura e democracia. A segunda é, se se confirmar que Angola é uma anocracia, a probabilidade apontada por Regan e Bell de ser mais tendente a uma guerra civil. Colocando o tema de outra forma, o que se cura de saber é se o regime angolano é algo que combina elementos de ditadura e democracia, sendo inerentemente instável.
Qualquer resposta a estas perguntas é contestável, pois estamos ainda no início da afinação de um conceito – anocracia. A situação em Angola, ao longo dos anos, tem sido bastante atípica, saindo dos quadros normais da ciência política. Se existem estruturas metodológicas aplicáveis a Angola, o país desembaraça-se rapidamente dos modelos teóricos supostamente definidores. Assim, a Guerra Civil (1975‑2002), durante anos encarada como mais um episódio da Guerra Fria – que terminou em 1991, com a dissolução oficial da URSS –, continuou por mais 10 anos, só cessando com a eliminação física do líder de um dos contendores. Portanto, a Guerra Civil foi muito mais do que uma derivação da Guerra Fria. De igual modo, a relação estabelecida com a China, desde 2002, não obedece a nenhum parâmetro interpretativo maniqueísta, até porque a própria China tinha apoiado a parte da Guerra Civil que perdeu (UNITA) e, de repente, o vencedor (MPLA) torna-se o seu maior aliado.
Nestes termos, o que teremos são essencialmente intuições como respostas. Intuições baseadas em factos pretéritos, mas sempre intuições não precisamente comprovadas.
Tenho sempre entendido que a legitimidade do presente sistema político angolano não deriva de processos eleitorais, mas da vitória na Guerra Civil em 20024. Consequentemente, é uma legitimidade guerreira assente no sangue derramado, não tendo um documento jurídico fundador, como os Estados Unidos têm a sua sagrada Constituição. De 2002 até 2010, Angola nem sequer teve uma Constituição, vivendo debaixo da égide de umas leis constitucionais de 1991/1992. Há, portanto, uma discrepância entre documentos jurídicos e realidades políticas. E, se bem que tenham existido eleições em 2008, 2012 e 2017, estas não visavam buscar qualquer legitimidade fundacional, mas tão só servir de reforço da legitimidade de 2002. Por sua vez, durante essa época, o poder exerceu-se dentro de estruturas factuais dominadas pelos fundos provenientes do petróleo e acesso aos mesmos fundos, com pouca ligação com os sistemas legais e formais de governo. Paula Roque recentemente caracterizou esse sistema como “sombras” com muito mais poder do que as instituições governamentais, sendo que essas “sombras” enfraqueceram a administração e ampliaram a distância entre o Estado e os civis5.
Não há dúvidas em afirmar que, de 2002 (não analisamos os anos anteriores, pois deram-se num contexto de guerra que é sempre diferente) a 2017, Angola viveu como um regime autocrático de facto sem qualquer respeito ou consideração pelas formas legais.
A pergunta que se coloca é se, a partir de 2017, Angola deixou essa autocracia, e para onde vai.
João Lourenço, Presidente da República, desde 2017, quis marcar uma rutura com o passado. Aquilo a que neste momento (janeiro 2022) chamaríamos uma rutura incompleta. O presidente tentou introduzir uma reforma da economia, uma abertura política e um desmantelamento da oligarquia dominante. Uma tarefa demasiado abrangente que levou a vários avanços e recuos, e considerações estratégicas, além de sobressaltos.
Devido a esses sobressaltos e à reação brutal que se fez sentir por parte das oligarquias ameaçadas, a partir de 2020, é que se poderá avançar a hipótese que o regime passou de uma autocracia para uma anocracia, tornando-o mais permeável, novamente, a uma guerra civil.
Não propendemos para a verificação dessa hipótese. Nos dias de hoje, aquilo a que estamos a assistir é uma tentativa de transição da autocracia para a democracia. Estamos em pleno voo. Se vai ter sucesso ou não será um exercício divinatório, em que se mistura fé e esperança, mas pouca ciência. Se essa transição falhar, é óbvio que cairemos na anocracia, um regime instável entre a ditadura e a democracia com propensão para a guerra civil.
Rui Verde